Renata Rimet

Inspiração guardada não respira, verso é vício e vice versa...

Textos


 
           "(...) Por menos que conte a história, / Não te esqueço meu povo, /                        Se Palmares não vive mais, / Faremos Palmares de novo. (...)."
 
                         (José Carlos Limeira, fragmento da poesia Insônia)
 
 
Autora: Renata Rimet
Autor: Valdeck Almeida de Jesus
Revisora de Português: Lorena Cristina Ribeiro Nascimento
Revisora de Espanhol: Daniela Henao Osorio
 
A luta pela independência do Brasil tem muitos capítulos, vários deles iniciados na Bahia, estado por onde começou a invasão portuguesa em 1500, e onde também o país se libertou do jugo português, através de um movimento iniciado em 19 de fevereiro, cujo desfecho foi em dois de julho de 1822. A guerra por liberdade teve a participação efetiva das mulheres, dentre elas Joana Angélica, Maria Felipa, Anita Garibaldi, e outras.
 
As mulheres sempre tiveram participação efetiva na vida brasileira. “Na cultura brasileira, e mais especificamente a nordestina, as mulheres de tradição africana, do campo e das periferias, são depositárias de poderes extraordinários” (BARBOSA, 2015, apud GEBARA, 1991). Guerreira Zeferina é uma dessas mulheres, da qual pouco registro existe. A tradição oral informa que ela fundou e liderou o Quilombo do Urubu até 1826, em Salvador, Bahia, na região onde atualmente está o bairro de Pirajá e Parque São Bartolomeu, lugar de resistência e religiosidade afrobrasileira. Sua luta por liberdade é admirável e tem características da luta do Brasil pela independência!
 
Segundo Sílvia Barbosa, em seu livro O Poder de Zeferina no Quilombo do Urubu, “Zeferina é de origem angolana e, na primeira metade do século XIX, foi trazida ainda criança, nos braços de sua mãe, Amália, e já na condição de escrava” (BARBOSA, 2015).
 
De acordo com a escritora angolana Dye Kasembe, nas famílias em África a mulher detém o comando. E esta característica é determinante para se compreender o espírito de organização e comando da Guerreira Zeferina. Estava no DNA, fazia parte de sua vivência diária, herança de ancestrais. Em menor ou em maior proporção, esta chama de luta por liberdade permeava as comunidades e o ser feminino ali se fez presente, refletindo na construção de toda a sociedade, com suas batalhas, vitórias e derrotas, ao longo da história africana e das mulheres daquele continente.
 
A escravização não apagou o espírito e a memória. Pelo contrário, reacendeu os laços familiares, a alma comunitária e despertou, no caso particular, em Guerreira Zeferina, as forças necessárias para lutar contra a opressão imposta a si e aos seus. Renasceu naquela mulher as mais remotas memórias de mãe, esposa, companheira, amiga e principalmente responsável por tomadas de decisões e avanços políticos, sociais e econômicos.
 
O espírito ancestral da Guerreira Zeferina desborda fronteiras temporais. Este mesmo espírito tem repercussões nos dias de hoje, passados séculos de sua atuação, luta e demonstração do poder da mulher. Esse espírito também rompe com o silêncio histórico sobre a potência da mulher. A herança de suas lutas, perpetuada de forma oral evita o apagamento histórico e as tentativas de silenciamento e esquecimento da importância de sua atuação. Zeferina está presente na sociedade atual, através de grupos de mulheres, coletivos de poetas, pesquisadores de sua história etc.
 
Por falar em inspiração, dentre tantas memórias ancestrais, na capital baiana uma das inspirações é o Coletivo ZeferinaS, de poetas que mantém a luta por empoderamento feminino; outra é a Associação de Mulheres Negras Quilombo Zeferina, em Pirajá, que realiza trabalhos de conscientização e fortalecimento das mulheres em luta por respeito; Biblioteca Zeferina Beiru, com oficinas de arte, leitura etc; há, também, um curso pré vestibular batizado como Quilombo Urubu, no bairro Cajazeiras, que prepara jovens para conquistar espaço em universidades do estado; e mais recentemente um bairro fundado e conhecido como Cidade de Plástico foi reestruturado e batizado de Comunidade Guerreira Zeferina. 
 
O olhar sobre o comportamento feminino ao longo da construção histórica é de fundamental importância. As mulheres ocuparam espaços, apoiaram seus pares e enfrentaram o processo de supressão de seus direitos e de diminuir sua importância histórica.
 
Por vezes o questionamento gira em torno de quem foi a mãe, a esposa ou apenas o ser feminino que forjou a imagem do herói que se fez e faz presente com tamanha intensidade em cada página da história que nos são apresentadas.
 
Ao longo do tempo a mulher resiste, desenvolve estratégias que evidenciam o seu papel histórico, sua capacidade de reinvenção, fugindo de estereótipos moldados para ser apenas excluída socialmente e ter apagado seus feitos enquanto protagonista inteligente e forte, muitas vezes tratando o termo “guerreira” como uma exceção e não como regra de sua existência.
 
Ao tomarmos como base a trajetória de Zeferina e sua luta por justiça e liberdade, reconhecida hoje ainda com poucos registros – porém, viva, graças à tradição oral -, temos uma mulher, negra, escravizada e agindo estrategicamente para transformar a sua realidade e a de tantos no seu entorno.
 
E Zeferina não foi uma única mulher. Ela foi o reflexo de todas as demais que vieram antes de si, como sua mãe Amália, responsável pela formação da menina Zeferina, cujo empoderamento se deu a partir das histórias de outras mulheres que sua mãe lhe contava, da forma como seu povo ancestral se organizava e respeitava a liberdade.
 
Como não lutar pela liberdade se as que vieram anteriormente souberam fazer e defender seu povo? A formação do Quilombo era uma possibilidade de recriar o universo que Zeferina conheceu a partir dos relatos de antepassados e, através da oralidade, outras mulheres, homens, meninas e meninos foram acreditando na liberdade que deveria ser construída a partir da sua própria luta. A mensagem passada para a menina Zeferina através da tradição oral lhe inspirou a ser como suas ancestrais, mulher negra, heroína, guerreira que jamais perdeu a fome de liberdade - ainda que sobrevivendo ao ambiente insalubre destinado aos escravizados. Revolucionária, lutou em defesa do seu povo, liderou e se fez protagonista em favor da dignidade, visibilidade e cidadania.
 
Ainda segundo a tradição Zeferina exercia atividades domésticas no campo e no engenho, além de parteira, ajudando no parto de muitas moradoras dos arredores, conseguindo, assim, a admiração desses habitantes da área onde vivia. 
 
Sua disposição a lutar por liberdade se fortaleceu em 1826 ao receber, de uma casa de candomblé, os títulos de rainha, chefe, quilombola e guerreira, na região do Quilombo do Urubu. Lutou contra as forças policiais, acabou sendo presa e faleceu na prisão. “Seus restos mortais foram sepultados em algum lugar do Cabula” (BARBOSA, 2015).
 
De acordo com Davi Nunes, em artigo publicado no blogue Ungareia (2016), “Zeferina foi uma líder com muito poder, a qual todos a reverenciava e seguia as suas estratégias de luta. Ela organizou índios, escravizados fugidos, ou melhor, homens e mulheres que cunharam a sua liberdade com coragem, e libertos, no geral, que queriam a libertação para todos os negros da província do Salvador”.
 
O levante aconteceria no natal, dia 25 de dezembro de 1826, mas foi antecipado porque em 17 de dezembro o Quilombo do Urubu foi surpreendido por capitães do mato, que foram derrotados. Alguns escaparam e se juntaram ao comandante de tropa, José Baltazar da Silveira, com doze soldados e um cabo, e mais de vinte soldados das milícias de Pirajá que empreenderam novo ataque. Zeferina, com arco e flecha os confrontou, mas foi vencida, amarrada e levada à Praça da Sé, onde foi insultada por escravocratas (NUNES, 2016).
 
A força da Guerreira Zeferina está fincada na ancestralidade africana; na organização social matrilinear, em que a mulher detinha parcela de poder; e nos ensinamentos históricos de sua mãe Amália que foi responsável por perpetuar conhecimentos. Este poder herdado desde criança se encarnou em seu ser, transformando-o em prática libertária do seu povo no quilombo (BARBOSA, 2015).
 
A morte de Zeferina no Forte do Mar não arrefeceu os ânimos pela luta contra a escravização. Ao contrário, fortaleceu a chama da liberdade e a Guerreira Zeferina se tornou um símbolo da luta contra a dominação.
 
Há muitas outras mulheres na Bahia, cada uma com sua contribuição na luta por afirmação, em outros tempos, como Tia Ciata, Luísa Mahin. A história, antes contada pelo opressor, hoje começa a ser reanalisada, reescrita e ressignificada, rendendo homenagens àquelas heroínas anônimas (ARRAES, 2017), a todas as mulheres que tiveram atuação de extrema importância para a conquista da liberdade feminina e consolidação da independência do Brasil. Falar da luta de Zeferina é reconhecer a importância das mulheres e denunciar a morte histórica e epistemológica de cada uma delas. Para cada nome apagado, para cada silenciamento, um grito de Guerreira Zeferina Vive!
 
Referências Bibliográficas:
 
ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. São Paulo: Pólen, 2017.
 
BARBOSA, Sílvia. O poder de Zeferina no Quilombo do Urubu. Site Est, 2005. Disponível em: <http://www.est.com.br/periodicos/index.php/identidade/article/viewFile/2263/2158>.  Acesso em 30, abril 2019.
 
KASEMBE, Dye. As mulheres honradas e insubmissas de Angola. 2ª edição. Luanda, Angola: Mayamba, 2010.
 
NUNES, Davi. O relato insurgente de Zeferina do Quilombo do Urubu. Rimance. Salvador-BA, 2017.
 
__________. Zeferina: Rainha quilombola que lutou contra a escravidão em Salvador-BA. CEERT, 2016. Disponível em: <https://ceert.org.br/noticias/historia-cultura-arte/11273/zeferina-rainha-quilombola-que-lutou-contra-a-escravidao-em-salvador-ba>. Acesso em 25, abril 2019.
 
__________. Zeferina: Rainha quilombola que lutou contra a escravidão em Salvador-BA. Ungareia, 2016. Disponível em: <https://ungareia.wordpress.com/2016/05/13/zeferina-rainha-quilombola-que-lutou-contra-a-escravidao-em-salvador-ba/>. Acesso em 25, abril 2019.
 
Renata Rimet – Bacharel em Administração de Recursos Humanos (Unirb – Centro Universitário Regional da Bahia); Licenciatura em Letras (Uniasselvi – Universidade Leonardo da Vinci); Pós-Graduação em Gestão de Pessoas com ênfase em Psicologia Organizacional (FTC – Faculdade de Tecnologia e Ciências)
 
Lorena Cristina Ribeiro Nascimento (*) Mestra em Língua e Cultura e Doutoranda (PPGLinC) pela Universidade Federal da Bahia – UFBA
 
Valdeck Almeida de Jesus – Graduado em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade do Salvador
 
Daniela Henao Osorio - Desenhista de Modas e Escritora
Renata Rimet e Valdeck Almeida de Jesus
Enviado por Renata Rimet em 05/09/2019
Alterado em 05/09/2019
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